terça-feira, 16 de agosto de 2011

Crítica: Tragédia urgente de uma realidade sem amor (por Lucianno Maza)

foto de Núbia Abe

O Grupo Bagaceira de Teatro, do Ceará, volta a Itajaí (eles estiveram na cidade na primeira edição do Festival Brasileiro de Teatro) para apresentar na cidade portuária a realidade da prostituição infantil, tão comum em outros portos do Brasil.

Por Lucianno Maza
Itajaí

Hoje coletivo teatral mais reconhecido da cidade de Fortaleza, no Ceará, o Grupo Bagaceira de Teatro vem consolidando ao longo de seus onze anos de trajetória um repertório eclético que passa pelo drama, a comédia, o teatro experimental e o infantil. É possível dizer que todas essas vertentes se encontram, em menor ou maior grau em “Meire Love - Uma Tragédia Lúdica”.

O texto conta a história de três meninas prostituídas com idade entre onze e treze anos. Jovens sem referências familiares que buscam em seus sonhos a mesma felicidade que elas acreditam ter sido alcançada por outra colega (similar e duplo delas) que fora levada por um cliente estrangeiro. Sem consciência de suas próprias condições, as personagens não são martirizadas, ao contrário, usam-se do instinto de sobrevivência e de artimanhas como o entorpecimento por meio das drogas para suportar e atravessar dias e noites de solidão só compartilhada por outras iguais - amigas na marginalidade compartilhada e rivais nas pequenas disputas do cotidiano.

foto de Núbia Abe
Lúdico, mas nem tanto
A ludicidade esperançosa que possuem descende de certa inocência que insiste em contaminar suas mentes. São prostitutas que brincam de boneca, fãs de música pop abusadas em troca de cerveja. Esperam que um príncipe as salve, mas os príncipes não são mais encantados filhos de reis, mas turistas sexuais, gringos, que com o poder da moeda as tirariam de suas próprias vidas e as levariam para o outro lado do oceano - sem devolvê-las. “Love”, dizem elas, para se referir aos homens grotescos por quem pegam alguma afeição como tentativa de salvação, numa existência que, de fato, não tem nenhum amor.

O espetáculo, estreado em 2006, é um contundente exercício estético e narrativo sobre uma realidade brutal e esmaecida: a prostituição infantil, essa chaga incômoda e ignorada da sociedade brasileira, presente, sobretudo, em cidades turísticas e ou economicamente fragilizadas, como é o caso da região do Nordeste brasileiro, onde o turismo sexual e a consequente exploração de meninas são abundantes pela pobreza do povo e a falta de combate dos poderes governantes.

Trabalho urgente a ser assistido, é pela incorreção da arte que expõe e coloca a realidade contemporânea e evitada pelas pessoas, para ser assistida e pensada por elas. Renegando a politização do discurso, se torna obra de arte e veículo para o debate social.

Tragédia
É preciso não se enganar com o tom inicialmente cômico do texto de Suzy Élida Lins que tira proveito do ritmo da prosódia do sotaque e das gírias locais (que soam engraçadas para o público de outras regiões do país) e de citações populares pertinentes ao universo que retrata. O texto consistente evoca uma reflexão séria por um caminho não maniqueísta e, sim, corrosivamente engraçado em alguns momentos, provocando incômodo na crueza real que apresenta a história sem julgá-la.

A autora domina o linguajar do universo que retrata e trabalha com alguns elementos reconhecíveis da tragédia grega, como a presença do oráculo representado na história por uma mãe de santo e seus búzios que anunciam a desgraça fadada à personagem desterrada. Bem como na morte do amado oculto provocada indiretamente pela heroína sofredora.

Também na estrutura bem construída, Élida parece transformar as três vozes (apresentadas por Meire 1, Meire 2 e Meire 3) em espécie de coro de uma mesma coriféia (a Meire que se foi). De certa forma, as quatro são partes do mesmo todo, fragmentos de um único discurso, uma única história que se repete nelas e em tantas outras personagens reais que perdem suas identidades particulares.

Encenação seca
A direção da autora e de Yuri Yamamoto provoca estranheza que corrobora o estado que a dramaturgia propõe. Dispensando o realismo e a ação dramática convencional, a encenação sofisticada em sua secura, coloca em cena três bancos onde se sentam três homens. São esses atores que, voltados para a plateia, dizem o texto intensamente, inflando com sopros de vida sonhos-plásticos infantis que, resquícios de inocência e imaginação, ao fim, serão estourados, destruídos, perdidos na formação de amadurecimento das personagens. 

O distanciamento com o qual a história é contada pela encenação, de certa forma suaviza a agressão com o impacto emocional da história, o que ajuda a comunica-la para um público mais amplo. No entanto, essa mesma opção realmente provoca intelectualmente pela narração e imageticamente pela imaginação do espectador, tal qual a tragédia grega se valia para falar de ações tão duras e violentas que não poderiam ser mostradas ou vividas em cena, mas contadas com distância solene e menor interação emocional pelos atores.

Potência de atuações
Em cena, Yamamoto, Rafael Martins e Rogério Mesquita dão vida às três vozes-personagens, em irrepreensível trabalho técnico de precisão vocal e contenção física e emotiva. Yamamoto uma figura forte, oriental e nordestina, tem total aproveitamento de sua verborragia, resultando em ótimo trabalho, assim como Martins que, em excelente momento, provoca comoção quando sua personagem revela a perda daquele que para ela é seu grande amor. Mesquita, em interferências um pouco menores, destaca-se pela indigesta estranheza que evoca sua personagem ensandecida.

O trio de atores veste ternos e bustiês femininos organizados pelo diretor, também responsável pelo cenário - um tablado que vira cais para o mar de sonhos (sacos plásticos). A simplicidade objetiva da iluminação de Paula Yemanjá e Rogério Mesquita acentua a dureza e geometria da encenação.

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