sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Crítica: Máquina de caçar rinocerontes (por Humberto Giancristofaro)

foto de Núbia Abe



Critica da peça Dois amores e um bicho da Cia Exprimentus Teatrais
Autor: Humberto Giancristofaro

A peça Dois amores e um bicho da Cia Experimentus é uma montagem convencional do texto do venezuelano Gustavo Ott. Um convite às idiossincrasias da vida privada. Não haveria interesse algum em assistir os problemas domésticos de uma família, se estes não fossem reveladores de uma situação que está engasgada na garganta da sociedade. É um ato de coragem os atores Jô Fornari, Marcelo F. de Souza, Sandra Knoll e do diretor Daniel Olivetto mostrarem em cena a brutalidade daquilo que convencionamos chamar de normalidade. 

Conseguindo criar um ambiente coerente com o texto, os personagens dessa família sui generes, para suportarem conviver harmonicamente, precisam pôr em esquecimento os equívocos do passado. Ou melhor, precisam reformulá-los. As lembranças podem ser manuseadas para que as impressões construídas sobre elas definam-se de acordo com as volições vigentes. Camadas e mais camadas de lembranças vão se ajambrando na ilusão de fundar uma personalidade sólida e socialmente aceitável. Por nutrir esse sonho de ser normal, qualquer ruído de diferença é afinado. A primeira consequência desse arrolhamento é o estabelecimento de preconceitos e, consequentemente, em rompantes devastadores.

A figura paterna abobalhada, muito bem desenhada por Marcelo, é a expressão perfeita dessa psicologia. Tendo sido levado a escolher suas verdades, vê a verdade dos outros como desafiadoras e, por isso, dignas de serem destruídas. Quando sua realidade é fragilizada por uma ameaça, o único caminho é o confronto direto, a eliminação do diferente. Aplicado ao gênero, ao étnico e, mais danoso do que tudo, aos pontos de vista, esse preconceito corrói por dentro qualquer tentativa de sociabilização saudável. 

A forma como Sandra imprime essa tensão no personagem da mãe, faz de sua ótima atuação algo que incomoda o espectador por despertar nele a lembrança de que a normalidade é escorregadia. Também de forma bem concebida, Jô Fornari no papel da filha é um elemento chave para a trama. Com seu incessante questionamento é ela que entrega tudo de errado que está acontecendo, porém de uma forma naif. 

Aos poucos, a peça vai levantando o tapete para que o público aprecie seus preconceitos. Tudo isso só foi possível pelas excelentes escolhas que a direção tomou para construir um espaço acolhedor onde os segredos rondam e podem vir à tona. O cenário de Roberto Gorgati e o figurino de Bárbara Biscaro se completam no lugar de apontar para o cotidiano e usual como as máscaras da loucura em que vive a torpeza do ser humano. Longe de assinalar uma solução, a peça se realiza por sublinhar que “rinocerontes não são unicórnios”: não conhecendo um rinoceronte, os homens do passado o reconheciam como unicórnios – mesmo sabendo que estes são bestas lendárias, mas preferíveis a uma realidade desconhecida. O diferente não precisa ser encoberto apenas para que sua existência se justifique.

Nenhum comentário: