quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Crítica: Diversão e sensibilidade (por Lucianno Maza)

foto de Núbia Abe
Um dos nomes mais conhecidos da dramaturgia contemporânea nacional, o paranaense Mário Bortolotto, radicado em São Paulo, apresenta uma nova montagem de um de seus primeiros textos.

Por Lucianno Maza
Itajaí

Autor de uma das obras mais coerentes do teatro brasileiro, Mário Bortolotto tem seus textos assumidamente impregnados com a visão de mundo beatnik de autores como Jack Kerouac e, ainda mais do escritor próximo dos beats: Charles Bukowski. Seus personagens são homens que correm a vida sem grandes ambições, atrás apenas de uma boa música, uma boa cerveja e uma boa mulher, não necessariamente nessa ordem. Homens que não se lançam a complexas reflexões da vida, mas vivem de fato a experiência do passar dos dias. 

Em “À Meia-Noite Um Solo de Sax na Minha Cabeça” acompanhamos o crescimento de dois amigos de infância bastante diferentes: Jesse, um inseguro e quase alienado filho de uma família de classe média e Billy, consciente e politizado filho de uma prostituta. De 1950 até a virada do ano de 1983 para 1984, em cenas rápidas, temos os encontros, desencontros e reencontros desses dois homens opostos em suas ideias e realidades sociais, mas unidos por uma inabalável amizade. Com a História do país como pano de fundo, destacando o momento político da ditadura militar, o texto não se torna datado, pois, sabiamente, foca na relação humana, nessa espécie de amor real e possível que é a amizade.

Jovem autor
Escrita pelo autor aos 21 anos de idade, temos a chance de conhecer um jovem Bortolotto começando a maturar influências culturais e encontrar sua própria identidade que marca seu teatro até chegar aos grandes textos como “Nossa Vida Não Vale um Chevrolet” ou “A Frente Fria que a Chuva Traz”. Visivelmente aprendendo a lidar com elementos da estrutura dramatúrgica, ele já exibe nesse texto de seus primeiros, talento para diálogos fluídos, ora engraçados e ora melancólicos. Há um antagonismo bastante reforçado nas diferenças dos dois, que se revela especialmente na cena política quando os dois amigos, se encontram em lados opostos da campanha eleitoral ao Governo do Rio de Janeiro, e se enfrentam ideologicamente com clichês – que, como todo clichê, são frutos da realidade - sobre a direita e esquerda. São nos momentos onde as diferenças de ambos são representadas com mais sutileza que surgem as melhores cenas, como a hilariante dos bebês, o encontro ébrio no banheiro, o alucinado show, a conversa regada a cerveja gelada e a celebração do ano novo.

‘Os brutos também amam’
Em “À Meia-Noite Um Solo de Sax na Minha Cabeça”, Bortolotto já se mostra também como um dos escritores que melhor consegue transportar para o palco o universo do homem heterossexual - tão difícil de ser reproduzido em cena em suas emoções contidas e desencantadas. Se num primeiro momento algumas pessoas podem se incomodar com o que entendem como machismo, um olhar mais atento e destituído de preconceito perceberá a sensibilidade decantada nesses machos alfas, desvelando os oprimidos sentimentos masculinos. 

Se por um lado, os personagens chamam mulheres de puta - elas sendo ou não -, por outro são homens apaixonados por essas “putas”, que se mantêm casados e felizes ao lado delas (caso de Jesse) ou deslocados e em busca de uma. Da mesma forma, referem-se a homossexuais pejorativamente como veados, mas assumem sem pudores fazer sexo prazeroso com esses “veados” (como Billy), e até ensaiam sem afetações uma relação de “troca-troca”. Assumidamente há o sarro, mas não machismo ou homofobia em suas palavras. Adjetivam como aprenderam, sabem e podem, sem real carga moralizadora.

Em tempos politicamente corretos, a vulgaridade sincera desses personagens pode chocar com sua escrotidão, mas retratam com honestidade homens que, sem sua revolução emocional, criaram seu código social libertário e desenvolveram seu próprio sentido de sensibilidade. E, afinal, a sensibilidade surge de diferentes formas, dentro de vários contextos, e através de atitudes irreconhecíveis.

foto de Núbia Abe
Diversão em cena
Como diretor, Bortolotto não se preocupa a inventividades estéticas, mas sim em materializar da forma mais direta seu texto. Realiza as cenas em ritmo adequado, com marcações que soam despojadas na liberdade que dá aos intérpretes, mas são também funcionais e mesmo bonitas em sua simplicidade, como quando um deles, o mais abonado, senta-se no chão para ouvir o amigo que passa por momento delicado na única cadeira que dispõe ou no final, quando estouram em comemoração ao som do solo do sax de nossas cabeças. 

Sem apelar para virtuosismos, os atores Fábio Esposito e Henrique Stroeter mostram que dominam o palco e o transformam numa espécie de playground para seus talentos. Percebemos que eles, felizmente, se divertem em cena, mas é preciso notar que não há ali apenas fruição. Existe um apuro consciente de um humor físico de alta qualidade, alcançado com o desenvolvimento técnico da interpretação realista refinada em exagero controlado e até mesmo da palhaçaria dos dois atores. Espósito - que acumula experiências profissionais como palhaço - molda irrepreensivelmente a máscara facial e joga com suas posturas. Enquanto isso, Stroeter modula tempos e entonações vocais de forma admirável em chave de atuação.

Quanto à parte técnica, se destaca a pesquisa e simplicidade que atendem perfeitamente a representação das épocas e sua encenação, a começar pelo figurino correto de Henry Solomovici e a ótima iluminação de Bortolotto. A trilha sonora do diretor com músicas marcantes dos anos 1950 aos anos 1980 é outro trunfo do espetáculo. Contribuem também as projeções de Ronaldo Cahin com cenas históricas que localizam a realidade política do mundo e trechos de filmes e videoclipes representativos da cultura produzida ao longo das décadas em que se passa o espetáculo.

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