quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Critica: Expressões que traduzem impressões (por Humberto Giancristofaro)

foto de Núbia Abe
Crítica da peça Meire Love – uma tragédia lúdica, do Grupo Bagaceira de Teatro, de Fortaleza 
Autor: Humberto Giancristofaro 
Originalmente publicado no site Questão de Crítica

Meire Love – uma tragédia lúdica foi escrita pela dramaturga cearense Suzi Élida e dirigida por ela e Yuri Yamamoto. A peça trata do delicado tema da exploração sexual infantil. A história é sobre Meire, uma menina que, crendo nos búzios, tem fé de que um príncipe encantando estrangeiro vai tirá-la da miséria e levá-la para o exterior. Quando seu plano é descoberto, ela aparece morta. Sua coragem é exemplo para as colegas de rua que passam a discutir sobre as possibilidades que lhes restam, enquanto esmolam e prostituem-se pela orla de um balneário.

O Grupo Bagaceira de Teatro, de Fortaleza, realizou esta peça no II Festival de Teatro de Itajaí, como parte do projeto de desvelar a chaga social que é a prostituição infantil. Ao por em cena três homens de terno para interpretar o papel das crianças, a direção afasta-se de dois tipos de abordagem: a representativa e o discurso panfletário sobre o assunto, em prol da potência metafórica. Esta deve ser operada de forma positiva. Ou seja, valendo-se dela, a arte aufere a possibilidade de tocar o espectador naquilo que o força a pensar. Contrariamente, quando a metáfora é articulada no nível do discurso, é utilizada como artifício retórico para minimizar a situação, afastando o público do que se quer tratar.

O primeiro recurso, não-mimético, vem à tona pelas características da encenação dos atores Rafael Martins, Rogério Mesquita e Yuri Yamamoto. Eles permanecem sentados durante toda a peça em bancos sobre um tablado, com as mãos nos joelhos, cada um sob um foco de luz. A dramatização é construída exclusivamente pelas expressões faciais, pequenas inclinações do tronco para frente e para trás e pela expressão vocal que se desenha a partir da mescla da musicalidade do texto com os sotaques e a fala de rua, carregada de gírias e dialetos, como nos versos iniciais: “acunha calunga/ já é manhã!/ Bora, Bambina arigó/ que é quase agora!/ O mar não tá pra peixe/ mas meu love não demora”.

Por apresentarem, ao invés de reproduzirem os trejeitos das meninas, constroem uma relação franca com o espectador, dado que um primeiro artifício que a mente dispõe para formular essas imagens é o de lembrar o que já foi visto em outras ocasiões. Esta lembrança traz à tona a proximidade que qualquer um pode ter dessa situação. A incidência da prostituição infantil, por mais que seja tratada de forma velada socialmente, não tem nada de escondida. É cotidiano ver meninas na mesma situação andando pelas ruas das cidades e é fácil lembrar-se disso. Assim, a presença delas se afirma num nível mais íntimo, com as nuances que estão guardadas na memória de cada um. Deste modo, as cenas contam com a força de certa realidade, justamente por não lançar mão da representação. No entanto, um artifício decorre do figurino para ativar essa lembrança, por baixo dos ternos, cada ator usa um bustiê de cor néon, bem apertado, que pela falta de peito fica desengonçado, assim como acontece com as meninas de rua, impúberes. Essa simples peça de roupa é uma pontada, que é como se dissesse: “vocês sabem do que nós estamos falando”. Não é à toa que a plateia gargalhou nesse momento (talvez de nervoso).

O artifício estético de inflar sacos plásticos durante a encenação alude uma série de significados. Ao friccionarem as mãos nesses balões, os atores produzem sons de diferentes intensidades de acordo com as emoções que estão expressando – carinho, birra ou raiva são cadenciados por esses ruídos. O ato de encher esses sacos implica numa metáfora paradoxal. Em alguns pontos, ajudam a entender que o sonho dessas meninas é conseguir alguém que as beije na boca, símbolo de amor verdadeiro para elas. Mas também lembram o uso da cola de sapateiro que alucina suas mentes, amenizando a realidade em que vivem, criando uma realidade própria, na qual a capacidade de sonhar só é possível pelo entorpecimento, ou resulta dele. Nesses sacos elas sopram seus sonhos e os soltam para formar, ao final da peça, um mar de balões no proscênio.

O segundo artifício estilístico determina uma posição política. O texto da peça não é um discurso panfletário que glosa sobre os infortúnios da pedofilia e da prostituição, talvez porque, ao fazer isso, seria ineficaz, já que o discurso de repulsa à situação já está construído. No campo retórico, há uma cadeia causal que responsabiliza e justifica os motivos da existência de tal aberração social, mas que pouco alcança a realidade do problema. A peça, por sua vez, expõe como seria o dia a dia dessas meninas e alcança o público de outra forma que não pela conscientização do problema, mas por uma corporificação do problema, tocando individualmente, sem dar margem à delegação de responsabilidade a uma instituição encarregada. O corpo de cada espectador sente e reage à questão (ao sair da peça, a forma como se intelectualiza o problema após ter sido exposto a ele, às vezes para dissimulá-lo novamente, é um segundo momento que não cabe neste texto). A força que dá materialidade às impressões da peça é seu recurso metafórico.

Por esse artifício, Meire Love articula-se no distanciamento da generalização do problema. Cada menina tem suas dificuldades, suas preocupações e seus sonhos característicos. A peça não aposta na retratação de uma estrutura geral formada a partir de fragmentos escolhidos arbitrariamente, supondo que estes dão conta da realidade para formular uma doxa. No nível metafórico, as possibilidades de agenciamentos das ideias são mais livres. A relação se dá entre o corpo da peça e o corpo do espectador numa fruição. O que é corroído por esse sistema é a relação de vítima e carrasco que o discurso articula. Torna-se perceptível uma dimensão trágica da vida, para a qual se faz necessária uma ação, o que produz uma nova forma de se relacionar com o problema. Assim, a peça é capaz de estabelecer uma relação entre universos heterogêneos. 

foto de Núbia Abe

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