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foto de Núbia Abe |
Crítica da peça É só uma formalidade, do grupo mineiro Quatroloscinco – Teatro do Comum
Autor: Humberto Giancristofaro
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Estamos cansados do homem, nós sofremos do homem.”
Nietzsche
Após a reviravolta que sacou a humanidade da Idade das Trevas, o Renascimento formulou uma nova concepção do mundo, sob a qual, aos poucos, a sociedade europeia e suas descendentes foram se estruturando. Logo o Humanismo trouxe a figura do indivíduo e a ideia de uma razão que determina e referencia qualquer realização. O Racionalismo apossou-se do trono divino, vago na modernidade. O homem e seus costumes foram dissecados. Com esses estudos, manuais enciclopédicos puderam ser forjados para auxiliar o caminhar da sociedade. Não obstante, a referência a esse humanismo se tornou compulsória e o comportamento do homem se estruturou como uma fórmula demasiado humana. O grupo Quatroloscinco, procurando desconstruir esse protocolo, levou à cena É só uma formalidade.
Duas histórias paralelas compõem a dramaturgia dessa peça. A primeira, fruto das pesquisas de dramaturgia latino-americana, é baseada no texto Só os babacas morrem de amor, do escritor argentino César Brie, e trata do filho pródigo (Marcos Coletta) que retorna para o enterro do pai e se encontra com o irmão (Assis Benevenuto). A segunda, um diálogo entre marido e mulher (Ítalo Laureano e Rejane Faria) que acabaram de se mudar para uma casa nova, foi completamente fundamentada pelas improvisações durante os ensaios. Ambas incorporam experiências muito pessoais dos integrantes do grupo, até mesmo presentes na origem de alguns objetos cênicos, o que foi revelado por eles no bate-papo após a peça: o vídeo de uma festa de casamento projetado, assim como a garrafa de champanhe que é estourada durante a peça, são do casamento do ator Ítalo com a produtora Maria Mourão; as fotos nos porta-retratos em cima do piano são do primeiro casamento de Rejane e o álbum de família é uma recordação do casamento dos pais de Marcos.
Essa exposição da proveniência de tais objetos ajuda a trazer para este texto as delicadas impressões afetivas formuladas pela estética da peça. Tudo nela é muito íntimo: o trato dos atores que recebem em cena aberta todos os espectadores, conduzindo-os aos seus lugares; a conversa que eles estabelecem com alguns durante o espetáculo e, acentuadamente, o convite aos espectadores para ler um texto, fazer as vezes de uma figura ausente ou trocar de lugar com um deles. Por meio desses e de outros artifícios, cria-se um ambiente de empatia entre todos os presentes. Associada ao fato de a plateia estar disposta em corredor, essa relação assume uma horizontalidade. Com isso, eles podem trabalhar de uma forma mais próxima no projeto de exposição das condições do humano.
As duas histórias se concentram na família e na influência dela na estruturação das formalidades particulares. Na narrativa do filho pródigo, Marcos e Assis estabelecem um código de conduta próximo ao de uma luta e o tencionam com as ciladas dos apegos à estirpe. Com luvas de boxe nas mãos, o treino desenrola-se entre diretos e jebs entrecruzados à descrição dos dilemas da educação sexual sofridos na adolescência do personagem. Parafraseado pelo ritmo de um treinamento de boxe que os atores encenam durante toda a peça, os temas da falibilidade e do adestramento se mesclam. Por um lado há uma desmistificação do projeto de progresso, com o qual o indivíduo supostamente teria sua condição de vida garantida, mas não é isso o que vemos cotidianamente.
Ou seja, o que é posto em questão é uma crença determinista de que, feito todas as premissas sociais ditas corretas, estudar ostensivamente, trabalhar de forma empenhada, pagar impostos em dia e construir uma família são suficientes para se ter boa cabeça, dinheiro no bolso e ordem no lar, contando com o mais importante de tudo, sucesso nas realizações. Esta fórmula, porém, mesmo aos que verdadeiramente a aplicam, constantemente dá sinais de engodo. Como resultado, surgem as frustrações, deixando as pessoas afoitas por descobrir a culpa e o erro, a fim de corrigi-los.
Para compreender esse jogo é mister saber que todo o projeto da formação subjetiva fundada pela modernidade vai, no período contemporâneo, perder seu caráter centralizador. Michel Foucault defende essa ideia ao concluir sua analise histórico-filosófica no livro As palavras e as coisas, dizendo que o homem é uma invenção recente na história de nosso pensamento, cujo fim talvez esteja próximo. Ainda na concepção cartesiana preservou-se a figura de Deus como fonte do saber. A moral derivada disso ditava o que deveria ser feito pelo homem com vistas ao bem maior. Na modernidade kantiana a moral volta-se para o homem, elevando a racionalidade como sua condição de possibilidade. Assim as regras são fundamentadas como alicerce nas relações humanas e uma série de acordos estabelece as bases tanto do saber, quanto do poder. Com o passar dos tempos esses acordos foram ficando velados e dogmatizados. Na peça, toda vez que o marido, personagem de Ítalo, é atingido pela recordação de que as regras são acordos, ele tomba no chão, como se tivesse recebido uma rasteira em suas certezas. Ou ainda, essa condição fica mais nomeada quando dita pelo filho pródigo sobre sua experiência de ausência: “Vi todo o mundo do alto e quis escrever para contar o que eu estava vendo toda pobreza”.
O grupo Quatroloscinco ilustra que perder, assim como ganhar, faz parte do jogo. Alimentar as ilusões de que é possível ter uma vida genial full time esconde a história de fracassos que naturalmente faz parte desse jogo, recalcando-o. Independentemente de ter conseguido conquistar um projeto de vida, a peça suscita a falibilidade do homem e como o fundamental é entender que a relevância recai sobre o jogo, não sobre o resultado. Resta seguir em frente.
Por outro lado, a questão do que se apresenta só como uma formalidade está presente tanto no texto, quando põem em reflexão os condicionamentos do contrato social, quanto na encenação, que procura deslocar certas formalidades do ritual teatral, como mais explicitamente pode ser percebido ao final da peça. Ela termina com os atores desmontando o cenário, limpando o palco com a luz de serviço acesa, se despedindo e dando recados sem deixar o público aplaudir. Na verdade, como isso ainda soa incabível para muitos espectadores, os aplausos acontecem, todavia num lugar diferente do costume, não no final da última cena, mas quando todos já estão indo embora.
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foto de Núbia Abe |